OPINIÃO

Pepe Mujica: o farol da humildade e da coerência na política latino-americana

Ronildo Rodrigues dos Santos

Cientista Social

A América Latina é terra de contradições profundas, onde convivem o sofrimento histórico das maiorias excluídas e a potência vital de quem insiste em sonhar com um continente mais justo. Neste solo marcado por lutas e desigualdades, poucos líderes conseguiram sintetizar com tanta integridade a esperança popular quanto José “Pepe” Mujica. Sua morte, embora esperada por conta de sua saúde debilitada, reverbera como um baque coletivo — mas também como um convite à memória e à ação.

Ex-presidente do Uruguai, Mujica foi muito mais que um chefe de Estado. Foi — e continuará sendo — um símbolo vivo de uma esquerda com norte, com direção política e ética, comprometida não com dogmas ou estruturas de poder, mas com os rostos concretos dos que mais precisam. Sua biografia é, por si só, uma carta de intenções: guerrilheiro tupamaro, preso político por mais de uma década sob tortura, agricultor, senador, presidente, filósofo da simplicidade. Em todas essas facetas, carregou a coerência como marca d’água de sua atuação pública.

Num tempo em que a política frequentemente se vê capturada pelo cinismo e pelo espetáculo, Mujica caminhou na contramão. Recusou o luxo, morou na sua chácara humilde, dirigia um Fusca azul e doava a maior parte de seu salário. Mas seria um erro reduzi-lo a um folclore de gestos excêntricos. Mujica foi, sobretudo, um formulador e executor de políticas voltadas à dignidade. Durante seu governo (2010–2015), o Uruguai avançou em direitos civis, legalizou a maconha com controle estatal, aprovou o casamento igualitário, fortaleceu a educação pública e combateu a pobreza com medidas estruturais.

Não há esquerda viável sem projeto, e Mujica sabia disso. Em vez de se perder em debates estéreis ou em radicalismos desconectados da vida real, ele agiu com firmeza e sensibilidade. Sempre buscou o diálogo, mas sem abrir mão dos princípios. Seu discurso era direto, popular, e ao mesmo tempo profundamente filosófico. Defendia os mais pobres com a naturalidade de quem conhecia o chão batido da vida camponesa, mas também com a sabedoria de quem entendeu que justiça social é um horizonte que se constrói todos os dias, com persistência e coerência.

Com sua partida, fica um silêncio que dói, mas também um legado que inspira. Mujica nos deixou uma política que pode — e deve — ser feita de maneira ética, honesta, comprometida com a coletividade. Sua trajetória é um antídoto contra o autoritarismo, contra a tecnocracia fria, contra a política do marketing. Ele nos ensinou que a verdadeira revolução começa com gestos simples, mas orientados por grandes causas.

Na América Latina, onde os ventos da extrema direita voltam a soprar com força, lembrar Mujica é reafirmar a possibilidade de uma esquerda popular, democrática e enraizada no cotidiano das maiorias. Ele não pregava perfeições nem soluções mágicas. Pregava a vida com decência. Pregava a política como serviço. Pregava o amor como base da justiça.

A história, que às vezes tarda, mas não falha, o reconhecerá como um marco positivo não só para o Uruguai, mas para o mundo. Pepe Mujica provou que é possível governar com os pés na terra e o coração no povo. Que é possível ser radical — no sentido mais bonito da palavra: aquele que vai à raiz. Que é possível ser revolucionário sem perder a ternura nem a esperança.

Hoje, o mundo parece um pouco mais frio sem ele. Mas também mais iluminado pelo seu exemplo. A história de Mujica não termina com sua morte. Ao contrário, ela se transforma em farol para todos os que ainda acreditam que um outro mundo é possível — e necessário.

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