Ronildo Rodrigues dos Santos
Cientista Social
Vivemos tempos em que a palavra “inclusão” é repetida com facilidade nos discursos oficiais, mas ainda está distante da realidade concreta das escolas brasileiras. O número de alunos com Transtorno do Espectro Autista (TEA) matriculados em escolas comuns mais que dobrou entre 2022 e 2024, saltando de 405 mil para 884,4 mil. A princípio, esse dado poderia ser lido como uma conquista, mas ao olhar de perto o que se passa nas salas de aula, nos corredores e nos bastidores da educação pública, o que vemos é um sistema despreparado para lidar com a diversidade que acolhe, ou que deveria acolher.
Garantir a presença física de uma criança com TEA na sala de aula não é inclusão. É preciso muito mais do que isso: são necessárias adaptações curriculares, estrutura adequada, apoio técnico e acompanhamento especializado. No entanto, a realidade em muitas escolas é marcada pelo improviso, pelo despreparo e, em alguns casos, pela violência. Redes de ensino inteiras ainda não estão prontas para lidar com comportamentos mais intensos ou agressivos, comuns a algumas crianças dentro do espectro. Isso é agravado pela ausência de formação específica dos profissionais da educação, que frequentemente são deixados sozinhos para manejar situações complexas sem nenhum protocolo, respaldo técnico ou treinamento prévio.
O espectro do autismo é amplo, e não há um padrão único de comportamento. Crises podem variar em causa, intensidade e frequência, o que exige sensibilidade, técnica e estratégias individualizadas. O Brasil, contudo, ainda não possui regulamentação nacional sobre contenção física em escolas, o que faz com que episódios de crise sejam manejados de maneira arbitrária, às vezes com uso de força ou práticas abusivas. O resultado disso são crianças humilhadas, professores expostos, famílias revoltadas e um ambiente escolar cada vez mais tenso.
Em 2024, diversos casos ganharam repercussão nacional. Em São Paulo, uma professora foi filmada sentando-se sobre um aluno autista como forma de contê-lo. No Rio de Janeiro, um professor de capoeira deu uma rasteira em uma criança durante uma crise. Em outra cidade, uma criança foi impedida de se alimentar e sofreu agressões físicas e verbais por parte de funcionários da escola. Essas situações não são isoladas: refletem uma lógica perversa em que a negligência do Estado acaba empurrando as escolas a lidar com o sofrimento psíquico com medidas que beiram a tortura. E quem mais sofre são as crianças.
Trago esse debate reconhecendo os esforços da Prefeitura de Boa Vista, por meio da Secretaria Municipal de Educação, pela rapidez em colocar cuidadores em sala de aula quando há laudo comprovando o diagnóstico. É um passo importante e que merece ser valorizado. Mas não posso silenciar diante da indignação. Em apenas uma semana, ouvi o relato de duas mães cujos filhos apresentam sinais evidentes de TEA, mas que ainda não conseguiram o laudo devido às burocracias do sistema de saúde. Sem esse documento, seus filhos têm sido vítimas de humilhações e maus-tratos. Em vez de acolhimento, recebem rótulos cruéis como “preguiçoso”, “mimado” ou “malcriado”. Os professores, por despreparo ou preconceito, culpam as mães, colocando em xeque sua forma de educar, gerando um sofrimento psicológico profundo em quem deveria ser apoiado pela escola.
É preciso romper com essa lógica. Não é possível falar em educação inclusiva sem garantir formação adequada, suporte emocional e técnico aos educadores, políticas públicas claras e infraestrutura apropriada. A formação dos professores precisa incluir estratégias de análise do comportamento humano, técnicas de prevenção de crises e práticas pedagógicas adaptadas. As escolas devem contar com espaços de acolhimento, como os chamados “cantinhos de regulação”, além de recursos de comunicação alternativa e acessibilidade emocional. O diálogo com a família precisa ser contínuo, desde o momento da matrícula, para construir juntos os melhores caminhos para o aprendizado e bem-estar do aluno.
O Estado também precisa assumir sua parte. É urgente regulamentar, em âmbito nacional, protocolos de manejo comportamental e investir em formação docente de verdade, contínua e baseada na realidade das escolas. Não podemos mais aceitar que, diante de uma crise, a única resposta possível seja o afastamento da criança, como se ela fosse um problema a ser retirado da vista, uma exclusão que fere os direitos humanos, aprofunda desigualdades e transforma a escola em um ambiente hostil para quem mais precisa dela.
Não se trata apenas de uma falha do sistema educacional, trata-se de uma falha ética, política e social. O direito à educação inclusiva não pode depender de um laudo. Crianças com autismo, diagnosticadas ou não, têm o direito de serem vistas, ouvidas e respeitadas. Quando uma escola maltrata uma criança por não saber lidar com ela, estamos diante de uma forma de violência institucional que precisa ser nomeada, denunciada e enfrentada.
Incluir é mais do que permitir estar junto. É reconhecer a diferença, investir no cuidado e garantir condições reais de pertencimento. E isso exige mais do que boa vontade: exige responsabilidade pública, coragem política e compromisso com uma educação verdadeiramente humana.