OPINIÃO

Governança Criminal: a dura realidade brasileira, a gênese das facções

O Brasil assiste, desde os anos 1970, à ascensão de organizações criminosas que se transformaram em verdadeiras estruturas de poder paralelo. O Comando Vermelho, fundado nos presídios do Rio de Janeiro, e o Primeiro Comando da Capital (PCC), criado em São Paulo nos anos 1990, foram os marcos iniciais de um modelo que hoje se ramifica em 64 facções criminosas ativas, das quais 12 já possuem alcance interestadual. Segundo reportagem do jornal O Globo, atualmente existem ao menos 64 facções atuando nas 27 unidades da federação, sendo que PCC e Comando Vermelho estão presentes em quase todos os estados, enquanto em regiões como o Rio Grande do Sul predominam grupos locais (CBN, 2025).

Um estudo publicado pela Cambridge University Press revela que uma em cada quatro pessoas no Brasil vive sob algum tipo de governança criminal, o que equivale a mais de 50 milhões de cidadãos (Uribe; Lessing; Schouela; Stecher, 2025). Esses grupos, antes centrados apenas no narcotráfico, compreenderam que sua sustentabilidade dependia da diversificação de atividades ilícitas. Hoje, não apenas gerenciam o tráfico, mas também exploram o comércio local, controlam clandestinamente serviços como internet, água, energia elétrica e até transporte, impondo taxas e restrições que transformam necessidades básicas em fonte de renda criminosa. Nessa lógica, o crime se apresenta como poder paralelo, oferecendo uma pseudojustiça por meio dos chamados “tribunais do crime”, em que pune com extrema violência aqueles que não seguem suas regras, projetando a ideia de ordem em territórios vulneráveis.

A expansão para além do tráfico

As facções brasileiras expandiram-se em escala internacional, consolidando o país como hub atlântico do narcotráfico. Portos como Santos (SP), Paranaguá (PR), Itajaí (SC) e Suape (PE), bem como aeroportos internacionais, são pontos centrais na exportação de cocaína para a Europa. No eixo amazônico, rios como o Rio Negro e o Solimões funcionam como corredores invisíveis para escoar drogas da Colômbia e da Venezuela até Manaus, de onde seguem para o Sudeste ou diretamente para o exterior. Relatórios como o International Narcotics Control Strategy Report do Departamento de Estado dos EUA (2025) já apontam o Brasil como peça-chave no circuito transnacional da cocaína, em articulação com cartéis andinos e máfias europeias. Há ainda evidências do uso de embarcações semissubmersíveis — conhecidos como “narco-submarinos” — identificados em rotas que passam pelo Pará e pelo Amazonas, sofisticando a logística criminosa e dificultando a interceptação pelas autoridades (UNODC, 2024).

Roraima e a fronteira vulnerável

O estado de Roraima tornou-se um ponto de vulnerabilidade crítica, marcado pela pressão migratória da Venezuela e pela infiltração de grupos estrangeiros. O Tren de Aragua, facção de origem venezuelana, tem tentado se estabelecer na região, explorando brechas na fronteira e buscando alianças locais. Além da atuação em crimes como tráfico e extorsão, há relatos de que seus integrantes já foram responsáveis por execuções e homicídios de venezuelanos que afrontaram ou descumpriram sua doutrina interna, impondo medo e disciplina violenta sobre conterrâneos refugiados. Esse movimento acende um alerta para o risco de consolidação futura de uma facção estrangeira em território nacional, justamente em uma área de divisa sensível e historicamente pouco protegida pelo Estado brasileiro. A ausência de fiscalização robusta e a vastidão geográfica da Amazônia tornam a região estratégica não apenas para a infiltração de drogas, mas também para fluxos migratórios ilegais, tráfico de armas e lavagem de dinheiro. Nesse cenário, facções e cartéis passam a ser compreendidos como verdadeiros atores armados não estatais, que operam em redes transnacionais e ameaçam diretamente a soberania nacional.

A governança criminal e seus efeitos

Esse modelo confirma o conceito de “governança criminal”, entendido como a capacidade das facções de impor normas e regular a vida social em territórios onde o Estado é frágil. Como analisa Lessing (2021), trata-se de um sistema em que organizações criminosas estabelecem regras paralelas que competem com a autoridade estatal, criando uma lógica híbrida de poder. Em comunidades controladas, moradores são submetidos a normas impostas por facções, que podem proibir determinados delitos, impor toques de recolher e até intermediar conflitos. Magaloni, Franco-Vivanco e Melo (2020) observam que esse tipo de regulação não substitui apenas o Estado ausente, mas também gera dependência social, criando uma relação perversa entre ordem, medo e sobrevivência. Paralelamente, os grupos criminosos têm adotado estratégias típicas de uma guerra híbrida, infiltrando-se nas mídias digitais, na música e na cultura popular. O funk proibidão e determinados estilos de rap servem como ferramentas de propaganda, exaltando líderes criminosos e naturalizando a violência como forma de ascensão social. Plataformas digitais são usadas como campo de batalha informacional, difundindo mensagens, exibindo armas e impondo uma estética do crime que conquista jovens em territórios vulneráveis. Trata-se de uma disputa pela narrativa que mina a legitimidade do Estado e fortalece a imagem do crime como referência cultural.

Esse impacto não se restringe às comunidades. O segundo ano do governo do presidente Lula (2024) registrou o maior número de policiais militares mortos em serviço, evidenciando a escalada da violência letal contra agentes de segurança e a intensificação dos confrontos com facções organizadas (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2025). O enfrentamento à governança criminal, portanto, exige uma resposta multidimensional: reestruturação do sistema penitenciário, corte dos vínculos que permitem que presídios funcionem como “sedes administrativas” de facções, ampliação da presença do Estado em fronteiras e corredores fluviais, investimentos em inteligência e cooperação internacional, além da valorização das forças policiais, hoje na linha de frente dessa guerra assimétrica. Sem reformas estruturais e sem o reconhecimento de que o crime opera em múltiplas frentes — econômica, social, cultural e simbólica — o Brasil corre o risco de assistir à consolidação definitiva de um Estado dentro do Estado.

LINDOMAR FERREIRA SOBRINHO – Capitão da PMRR

Bacharel em Direito

Pós Graduado em Administração Pública, Ciências Jurídicas, Ciências Policiais e Mídias Digitais.

Especialista em Comunicação Estratégica

Compartilhe via WhatsApp.
Compartilhe via Facebook.
Compartilhe via Threads.
Compartilhe via Telegram.
Compartilhe via Linkedin.