A pergunta sobre o que é cognição é uma pergunta que pode nos colocar em determinadas armadilhas teóricas. Não há uma só resposta que não incorra numa postura já bem delimitada. Todavia, podemos prover uma noção mais geral para cognição como um tipo de ação mental ou processo de aquisição de conhecimento e compreensão por meio do pensamento, da experiência e dos sentidos.
Numa perspectiva mais clássica ou tradicional, a cognição está atrelada a uma concepção da mente ligada à metáfora computacional. Isso significa dizer que os processos mentais são, em última análise, processos computacionais e que, o cérebro, tomado como um computador dotado de inúmeras conexões é o locus natural de nossa cognição. Desde o alvorecer das ciências cognitivas essa imagem da mente foi responsável por inúmeros projetos de pesquisa que impactaram não só as ciências, mas também a filosofia. Filósofos como Dretske (1981) que endossam essa imagem da perspectiva cognitiva, tendem a tratar nossa relação com o mundo real de forma mais passiva de modo que os inputs que atravessam nossa cognição têm como respostas os outputs adequados para cada processo que ocorre em nosso cérebro. Essa postura também tende a desvalorizar a consciência e focar em processos subjacentes à experiência fenomênica (Searle, 2015), ou seja, processos dos quais não somos conscientes, mas que são responsáveis por manter o funcionamento adequado de nossa cognição. Susan Hurley (1998), acertadamente, batizou essa postura de imagem input-output.
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
Em contrapartida, a cognição na perspectiva enativista ou incorporada é um promissor e interdisciplinar projeto de pesquisa que se baseia em disciplinas como a neurociência, psicologia, filosofia, linguística, robótica, etologia e inteligência artificial. Poderíamos nos perguntar em que medida essa concepção não seria a mesma da concepção tradicional, pois, a concepção tradicional também tem como influência essas mesmas disciplinas. A questão reside nos pressupostos epistemológicos de cada uma das abordagens. Na concepção enativista, temos uma reformulação ou rejeição total dos processos computacionais que a concepção tradicional enfoca. Na perspectiva da cognição incorporada, temos como foco a importância do ambiente e do corpo físico de um agente nas diversas habilidades cognitivas. Dessa forma, essa visão apregoa que é preciso reconhecer que o corpo ou as interações do corpo com o ambiente são responsáveis por constituir grande parte de nossa cognição. Portanto, não se pode tratar o cérebro como um computador e tampouco como a sede restrita da cognição; em outras palavras, os processos mentais não podem ser tomados estritamente como processos computacionais.
Falar em processos computacionais é endossar uma tese representacional dos conteúdos da mente humana. Os enativistas rejeitam essa tese. De acordo com Rolla (2023) “teóricos da cognição radicalmente corporificada modelam a cognição a partir de técnicas que dispensam conteúdos representacionais”. Esses conteúdos ou representações mentais são dispensados em prol de uma visão mais dinâmica da cognição onde o comportamento de um agente em sua miríade de estados possíveis complementa-se a partir dos variados modos dinâmicos que constituem o nosso ambiente natural.
Assim, para os adeptos da cognição incorporada, estados cognitivos mais básicos como ação e percepção “emergem de exercícios de habilidades sensório-motoras, isto é, habilidades que correlacionam padrões de movimento com padrões de sensação” (ROLLA, 2023). Numa guinada intencionalista da mente, é suposto que ação e percepção possuem intencionalidade, mas, movimento e sensação, não. Uma vez que ação e percepção emergem de exercícios de habilidades sensório-motoras, suas características não podem ser reduzidas àquilo da qual elas emergiram. Alva Nöe, em seu texto Action in Perception (2004), endossa essa tese quando afirma que “perceber é uma forma de agir”. Em outras palavras, nossa percepção é aprendida e o modo como aprendemos a perceber as coisas ao nosso redor é traduzido no modo como agimos em resposta a muitas dessas percepções.
Quando surgiu nos anos noventa a partir dos trabalhos de Varela, Thompson e Rosch (1993), o enativismo permanecia na redoma das discussões como um movimento marginal. Nos dias atuais, o cenário é completamente diferente e podemos dizer que tal postura acerca da cognição goza de um status respeitado no cenário acadêmico. Tanto é que na atualidade, não há um só aspecto das pesquisas em ciências cognitivas que não tenha recebido uma reformulação enativista em questões como linguagem, resolução de problemas, memória, emoção, percepção etc. Isso fez com que o enativismo aumentasse substancialmente seu número de adeptos.
Mas nem tudo são flores. A teoria da cognição incorporada enfrenta uma série críticas por partes de seus opositores. Via de regra, os críticos acusam o enativismo de endossar uma concepção generalista da cognição e de não oferecer uma alternativa genuína à ciência cognitiva de base computacional (imagem input-output). Outra crítica comumente endossada é que o papel que os corpos desempenham na cognição é meramente causal e não constitutivo da mesma. Vale lembrar que esse é um debate atual e vivo nas ciências cognitivas e também na filosofia/epistemologia/mente/linguagem/percepção. Os adeptos da cognição incorporada respondem a essas e a inúmeras outras críticas; alguns dos autores citados ao longo do texto fizeram sua contribuição em defesa da postura enativista. O que fica como resultado desse debate é justamente um novo olhar sobre velhas questões filosóficas acerca da mente, da natureza humana e sua relação com o ambiente. Aqui é onde reside o poder e a força da filosofia de estar sempre se reinventando, onde muitas de suas questões estão presentes desde a sua origem, mas que vestem novas roupagens com o passar dos séculos.
João Paulo M. Araujo
Professor no curso de filosofia da UERR