OPINIÃO

Brasil fora do Mapa da Fome: conquista real ou alívio estatístico?

Ronildo Rodrigues dos Santos

Cientista Social

O Brasil voltou a sair do Mapa da Fome, segundo dados divulgados pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) durante a 2ª Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU, realizada na Etiópia. Pela nova média de 2022 a 2024, menos de 2,5% da população brasileira está em risco de subalimentação, o que significa, segundo os critérios da FAO, que o país volta a ser excluído do vergonhoso grupo de nações com índices alarmantes de desnutrição crônica.

Trata-se, sem dúvida, de uma boa notícia. Deixar o Mapa da Fome é um sinal de que houve avanços concretos na recuperação de políticas públicas que haviam sido desmontadas nos últimos anos. Após sair do mapa em 2014, fruto de políticas de segurança alimentar, fortalecimento do salário-mínimo e programas como o Bolsa Família e o Programa de Aquisição de Alimentos, o Brasil infelizmente voltou a figurar entre os países com altos índices de subalimentação entre 2018 e 2020. A reversão desse quadro em 2024 é um respiro, mas não pode ser confundida com a resolução do problema da fome no país.

O conceito de subalimentação adotado pela ONU se refere ao consumo habitual insuficiente de calorias e nutrientes, que compromete o desenvolvimento físico, imunológico e cognitivo das pessoas. Atingir menos de 2,5% da população nesse critério é importante, mas não significa que o país esteja livre da fome em suas formas mais complexas e disseminadas. De acordo com dados da Rede Penssan, mais de 35 milhões de brasileiros ainda vivem em insegurança alimentar grave. Essa insegurança não se resume à subalimentação crônica. Ela abrange desde a instabilidade no acesso a alimentos, a redução na qualidade das refeições até episódios de jejum forçado por falta de dinheiro para comprar comida.

Essa distinção é crucial. O que os dados oficiais mostram é que a fome extrema, medida em padrões internacionais, recuou. Mas a sensação cotidiana de fome, a incerteza de ter o que comer no dia seguinte e a realidade de crianças indo à escola sem café da manhã permanecem presentes na vida de milhões de famílias. A fome visível cedeu espaço à fome silenciosa, aquela que não entra no radar da ONU, mas que grita nas periferias, nos campos e nas favelas do país.

Para os especialistas, o problema não está na produção de alimentos. O Brasil segue sendo um dos maiores produtores e exportadores agrícolas do mundo. O verdadeiro obstáculo é o acesso aos alimentos, barrado pelo alto custo de vida, desigualdade de renda, informalidade do trabalho e cortes em políticas sociais. O país produz comida em abundância, mas parcela significativa dessa produção está voltada para o mercado externo ou para a indústria de commodities, e não para abastecer a mesa das famílias brasileiras. Em outras palavras, o problema da fome no Brasil não é falta de comida, é a negação sistemática do direito de se alimentar.

A retirada do Brasil do Mapa da Fome também recoloca o debate sobre o papel do Estado na regulação do sistema alimentar. A pandemia escancarou a fragilidade da rede de proteção social e mostrou que deixar o acesso à comida nas mãos exclusivas do mercado é receita para a tragédia. O retorno de programas como o Bolsa Família, o fortalecimento do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) e a reativação de estoques públicos de alimentos foram medidas determinantes para essa reversão do quadro da subalimentação. Mas ainda há muito por fazer.

Um dos pontos mais delicados desse cenário é o uso político de estatísticas. Dizer que o Brasil saiu do Mapa da Fome pode soar como vitória completa, e isso é um erro. O dado é um recorte técnico, importante, mas que precisa ser analisado à luz de contextos mais amplos. A euforia oficial precisa dar espaço à escuta das vozes que ainda sofrem com a exclusão alimentar em seu cotidiano. Celebrar avanços não pode nos anestesiar diante do fato de que a fome continua sendo uma experiência concreta para milhões.

Por isso, o momento exige vigilância e ação contínua. O Brasil só deixará de ser um país marcado pela fome quando o direito à alimentação adequada for garantido a todos, e não apenas quando seus índices estiverem dentro dos limites aceitáveis pelas métricas internacionais. Isso exige políticas públicas duradouras, compromisso com a soberania alimentar e enfrentamento da desigualdade estrutural que define quem come e quem passa fome.

A conquista de 2024 não deve ser desmerecida, mas precisa ser compreendida como parte de um processo em disputa. Sair do Mapa da Fome não é chegar ao fim do caminho. É apenas sair de um patamar extremo. A fome, em suas formas visíveis e invisíveis, continua sendo um espelho das injustiças sociais do Brasil. E enquanto houver brasileiros comendo menos do que precisam, se alimentando mal ou dependendo de doações para sobreviver, a luta pela dignidade alimentar estará longe de acabar.

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