Cotidiano

Se atolar em rodovia para Rondônia, só a solidariedade salva o motorista

Rodovia liga Manaus a Porto Velho e também é passagem dos roraimenses que optam pelo caminho terrestre Brasil adentro

“Cê acha que falta muito pra chegar na balsa?”, indagava o motorista de um Fiat Palio 2008 a um desconhecido na BR-319, a rodovia que liga Manaus a Porto Velho e também é passagem dos roraimenses que optam pelo caminho terrestre Brasil adentro.

“Ainda falta uns 30, 50 quilômetros!”, responde o motorista da caminhonete.

Chuviscava. E já tinha escurecido quando os veículos iniciavam a passagem, a 20km por hora, por um dos piores trechos de rodovia federal brasileira, recheado de lama e buracos. Por ali, a placa “velocidade máxima permitida de 60km por hora” perde o efeito, principalmente entre dezembro e maio, quando chove.

Essa parte é conhecida como Trecho do Meio, onde há mais de 30 anos é a mesma coisa: 405km de via sem pavimentação e com ruínas do asfalto construído pelo regime militar anos 1970. Há três décadas, governos travam uma batalha com quem alerta sobre os impactos desse projeto de asfaltamento, a exemplo dos ativistas ambientais, para pavimentar o trecho.

Enquanto a situação não melhora, tem motorista que se arrisca mesmo assim. O Palio chegou à segunda balsa da BR-319 rumo a Porto Velho, que em Borba (AM), na altura do km 262, transporta por R$ 5 a R$ 150, de um lado para outro do rio Igapó-Açu, um afluente do rio Madeira.


Balsa de Igapó-Açu, em Borba (AM) (Foto: Lucas Luckezie/FolhaBV)

Do lado de lá, o motorista do carro se apresenta e conta brevemente a sua história com a rodovia: “Me chamo Lucenilton Almeida Viana, tenho 40 anos”. Naquela altura, o profissional de terraplanagem somava mais de mil quilômetros de viagem, contando com as rodovias BR-174 e BR-319, depois de sair de Boa Vista em retorno a Porto Velho (RO), onde tem casa e família e pretendia curtir Natal e Ano Novo.

Apesar das cinco propostas que tinha para trabalhar na capital de Rondônia, o paraense de São João do Araguaia resolveu arriscar uma vida nova em Roraima. Passou, pela primeira vez, pela BR-319, em outubro, rumo ao extremo Norte. Na época, a rodovia ainda estava seca e a poeira reinava.

Em Boa Vista, desagradou-se com a proposta que aceitou, mas gostou da cidade. No entanto, a ilusão com o novo emprego fez ele voltar para Porto Velho no dia 6 de dezembro. Nos primeiros quilômetros do Trecho do Meio, Lucenilton disse só ter escorregado. “Deus sabe pra frente o que vou enfrentar!”, disse ele no dia seguinte.

Lucenilton dormiu em um hotel de Borba (AM), do lado da balsa. Às 5h do dia 8, seguiu viagem. Uma hora depois, embalado pelo som de Marília Mendonça, compadeceu-se de um desconhecido motorista de um Fiat Mobi 2018 atolado no km 285. O homem ali era o mato-grossense Alex Dalazen, 35, todo sujo de lama. Era frio e a situação era acompanhada pelo orvalho.


A fé e a coragem embalam os motoristas pela BR-319 (Foto: Lucas Luckezie/FolhaBV)

A pressão sobre o Alex aumentava quando três caminhões, sentido Manaus, aguardavam pela saída do automóvel de lá, a 100 metros de distância. Lucenilton pediu ajuda. Uma hora depois, uma caminhonete, com a ajuda de uma corda, tirou o Mobi do atoleiro e o mato-grossense seguiu viagem.


Caminhonete tirou Fiat Mobi do atoleiro (Foto: Lucas Luckezie/FolhaBV)

Lucenilton olhara o motor do próprio carro e se surpreende: “rachou o meu radiador, tá vazando água aqui. Vou ter que andar 100 quilômetros pra resolver isso”. O parachoque se deteriorava. A causa era a precária condição da rodovia.

Mesmo assim, ele seguiu. Dali em diante, o paraense precisaria recarregar o reservatório do radiador com a água barrenta dos lagos ao redor da BR-319. Quase 100 quilômetros depois, só se via o rastro das rodas do Fiat Palio 2008. O motorista tinha sumido. A pergunta era: Será que ele cortou o caminho? “Acho que aquele carro não chega em Porto Velho”, previa um motorista.

A poeira pela frente parecia animar quem viajava para Porto Velho. Só parecia. Logo, surgia um lamaçal daqui e dali. E claro: veículos atolados, gente para ajudar os motoristas e sem vergonha de compartilhar histórias.

Por 405km de Trecho do Meio, onde não há sinal de celular e internet, tampouco fiscalização presente, o jeito é recorrer à proteção divina e contar com o “bom coração” de quem passa por lá.

*A história continua nesta terça-feira (14) em folhabv.com.br