Cotidiano

Medalhistas olímpicos deixam Cuba para buscar nova vida em Roraima

Prata em Pequim-2008, Emilio Correa Bayeux trouxe para o Brasil o pai Emilio Correa Vaillant, ouro em Munique-1972, para fugir da crise econômica sob a ditadura cubana, que controla a ilha caribenha desde 1959

Comida, medicamentos, moradia digna, oportunidade no boxe profissional e liberdade de expressão. Tudo isso e um pouco mais o lutador cubano Emilio Correa Bayeux, de 37 anos, decidiu buscar no Brasil há menos de duas semanas. E de forma não tão planejada assim, porque a ideia era ir ao Paraguai, terra de um grande amigo seu. Um dos fatores que mais lhe motiva a buscar condições melhores que as de sua terra natal é o pai Emilio Correa Vaillant, 69, diagnosticado com mal de Alzheimer desde 2019. Preferiu trazê-lo ao País praticamente nas costas em vez de seguir conselhos para colocá-lo num asilo.

“Como filho, eu não podia permitir isso. Lutei pra dar uma boa vida pra ele. Por isso o trago comigo. Não o vejo como uma carga, mas uma tarefa de Deus. Por isso, sempre todos os dias oro, peço muita saúde para seguir com essa tarefa”, disse em entrevista exclusiva à Folha.

Foi de Vaillant que o pugilista herdou todo o talento no boxe. Ainda criança, antes da revolução cubana de 1959, ele trabalhava de engraxate para ajudar a mãe. Aos 17 anos, já integrava a equipe nacional de Cuba. E em 1971, ganhou o primeiro campeonato internacional, na Colômbia, para no ano seguinte, nos Jogos de Munique, na Alemanha, se tornar o terceiro pugilista cubano da história a ser campeão olímpico.

Veja a luta que consagrou Emilio Correa Vaillant campeão olímpico:

Dois anos mais tarde, Emilio Vaillant seria campeão mundial de boxe, em Havana, capital de seu País, consolidando-se como o melhor atleta da América Latina. A aposentadoria do ringue veio em 1979, quando estreou como treinador, logo na seleção cubana, e trabalhou na função até 2014. Nesse interim, ele também fez um trabalho para formar crianças atletas. Uma delas foi o próprio filho, que não alcançou a mesma medida de sucesso do pai.

Emilio Bayeux começou a experimentar a ascensão em 2005, com o bronze no Mundial da China. Três anos mais tarde, voltaria ao País asiático para conquistar a prata nos Jogos de Pequim. O ouro só não veio porque foi acusado de executar um golpe irregular: morder o finalista britânico James DeGale. Acabou punido com a perda de dois pontos. Ele nega e acusa a decisão da arbitragem de tendenciosa. “É a habilidade do boxeador. Não mordi. É falso. Achei que foi roubo. Eu boxeava melhor que o outro e estranhamente eu perdi”, lamentou.


Emilio Correa (azul) na final contra o britânico James DeGale, nos Jogos de Pequim, em 2008 (Foto: Xinhua)

Um ano antes, Bayeux já havia conhecido o Brasil e se apaixonado pelo País. Na ocasião, foi ouro nos Jogos Pan-americanos do Rio de Janeiro, feito que se repetiria em 2011, em Guadalajara, no México. Em toda a carreira, o pugilista contabiliza mais de 550 lutas, sendo mais de 525 vitórias – a maioria dos triunfos por decisão dos juízes e nos últimos anos, mais por nocaute. Aos 37 anos, o cubano luta para se profissionalizar e diz ter preparo físico e hábil para enfrentar ao menos dez anos de carreira pela frente.

A saída de Cuba

Emilio Bayeux puxa para si a responsabilidade por narrar a decisão de deixar Cuba e relatar sua trajetória até o Brasil, porque o próprio pai, devido ao Alzheimer, não teria condição de contar a história, a ponto de achar que o local da entrevista ainda era o aeroporto de Havana, em vez de um hotel de Boa Vista.

Bayeux lembra que estava sentado, em casa, refletindo sobre a dificuldade em Cuba, incluindo a falta de dinheiro para reformar a desgastada residência, conseguir um trabalho para obter salário e comprar comida, além da falta de patrocinadores para ingressar no boxe profissional. “É muito cara a vida lá. Você tem que levantar todos os dias cedo e não se sabe se vamos ter o que comer”, relatou. “A única ação que tinha era vender a casa, pegar um passaporte e sair”.

Pelo histórico no boxe, o governo cubano concedia uma espécie de ajuda de custo aos medalhistas olímpicos. Enquanto Vaillant recebia 300 pesos cubanos mensais (o equivalente a R$ 65), Bayeux recebia 200 (R$ 43). O auxílio do pai, segundo o filho, dava para comprar não mais que dois frangos por mês.

Conforme Bayeux, Cuba tem médicos, mas não medicamentos para retardar as complicações patológicas do pai, acometido pela doença degenerativa devido às pancadas na cabeça durante a carreira de boxeador. “Todos os médicos que podiam ir pro Brasil já fugiram. De todo mundo que foi, de 15, dois ou três voltavam para Cuba”, lamenta. “A saída foi muito dura. Deixei tudo pra trás, todas as lembranças. Vendi a casa, o único patrimônio que tínhamos, pra sair pelo mundo […]. O dinheiro que ganhávamos lá não era suficiente nem pra tirar férias numa cidade simples e turística de qualquer lugar próximo”.

Após vender a própria casa, Emilio Bayeux saiu do País, algo impossível quando o ditador Fidel Castro governava Cuba. Ele comprou passagens aéreas caríssimas para si e ao pai e ambos entraram em um avião, no último dia 14, em Havana. “Lá, atualmente, se cobra um quarto do valor de uma passagem qualquer, é impossível viajar. Não há mais uma proibição, mas economicamente é impossível qualquer um sair de lá. Pro estado cubano, se você tem condições de viajar, você está fazendo alguma coisa ilegal. Mas o governo, às vezes, coloca venda nos olhos para deixar as pessoas irem para gerar impostos”, relatou.

Na capital do País, o lutador se despediu da esposa, rumo a Guiana, onde viveu uma aventura na companhia do pai. Sem detalhar muito, o atleta contou que, em um trecho, precisou caminhar em um rio com a água na altura do joelho, carregando mochilas em um ombro e o Vaillant noutro. O pesadelo real aconteceu numa floresta, quando nativos armados com facas assaltaram a dupla e levaram uma das bolsas com todo o dinheiro que possuíam.

“Ficamos sem nada”, lembra ele, que tampouco denunciou o crime às autoridades guianenses porque seu País o habituou a pensar de que não há a quem recorrer. “Como imigrante cubano, pensei que poderia ir preso por denunciar”, explicou ele, enfatizando que evitou se defender para proteger o pai. “Ainda bem que o passaporte não foi junto com o dinheiro. Estava numa mochila separada”.

Eles precisaram da ajuda de um amigo mais chegado que irmão, que vive no Paraguai, para superar a dificuldade, embarcaram em uma van para o Brasil e chegaram ao Brasil por Roraima. Ilegais, pai e filho prometem pedir refúgio ao País, que em 2022, bateu recorde no número de pedidos de refúgio feito por cubanos. De janeiro a novembro, foram 4,2 mil solicitações, que os colocam como o segundo povo do mundo que mais pediu refúgio ao País, atrás dos venezuelanos. O levantamento do Observatório das Migrações Internacionais foi feito a pedido do jornal Folha de S. Paulo. O novo governo federal, inclusive, é alinhado a Cuba e Venezuela, países com pobreza extrema governados por ditadores.

Esperança no Brasil


Emilio Correa Bayeux conta à Folha como chegou com o pai ao Brasil (Foto: Wenderson Cabral/FolhaBV)

Embora queira ir para o Paraguai, Bayeux admite que, se o Brasil oportunizar a si e ao pai melhores condições de vida, ficará por aqui. Pela primeira vez em Boa Vista, o medalhista olímpico admite ter se impressionado com a capital de Roraima, muito diferente de Havana.

“É a primeira vez que eu consigo caminhar e ver as coisas. Tou vendo que num supermercado, é incrível ver tanta variedade. Sabão, inclusive os embutidos, variedade de presuntos, tipos de queijo, como muçarela, branco. Sabia que isso existe, mas lá em Cuba não. Em Cuba, somente pode se permitir comer frango uma vez ao mês, assim como você tem direito a cinco ovos, 14 libras de arroz [equivalente a seis quilos], sete pra cada um. E por eu ser um atleta, preciso de muito alimento. Então, tinha que me virar pra ter o preparo que tenho e, assim, ter uma alimentação correta”, explicou ele, que além da ajuda governamental, precisava trabalhar de vendedor ambulante em seu País.

E foi no Brasil que pôde, finalmente, entender que “Cuba sempre esteve muito mal”, porque toda a impressão que tinha de seu País era passada pela imprensa local, totalmente controlada pela ditadura cubana. Na capital de Roraima, Bayeux disse ter se encantado com coisas inexistentes em Havana, como grandes parques, rotatórias e até postos de gasolina, além de a cidade boa-vistense ser “muito limpa”. “Lamentavelmente, Havana é uma cidade muito suja e não se sabe o porquê, pois, por ser uma capital, deveria ser mais limpa”, disse.


Emilio Correa Bayeux na Praça das Águas, em Boa Vista (Foto: Arquivo pessoal)

No País, Bayeux desfruta da possibilidade de criticar o governo cubano, o mesmo que prendeu seu ex-cunhado por ter participado das manifestações de 11 de julho de 2021, as maiores desde a revolução cubana. E diz viver um pouco do estilo de vida brasileiro vendido pelas telenovelas brasileiras para o mundo. “Quando vim aqui, me emocionei porque era como viver numa novela”, relembra da vez em que foi ao Rio de Janeiro.

Desde que chegou a Roraima, o medalhista olímpico de Pequim fez novas amizades que o ajudam a abrigá-lo no Estado, e espera ter contatos com treinadores que o possam levá-lo ao boxe profissional. “Sinto muita falta de estar na minha casa, de viver bem e respirar o ar de lá, porque Cuba é um bom lugar pra se viver, mau é o governo […]. No Brasil, quero ter a oportunidade de mostrar o quanto sou bom. Deus queira que algum anjo possa ler esta reportagem e nos dar uma oportunidade. Aceitamos qualquer ajuda. Tenho uma boa trajetória dentro do boxe, quero dar melhor condição ao meu pai, ajudar minha mulher, construir uma família. Fazer o bem pela sociedade. Também gostaria de ensinar as pessoas a buscarem melhor condicionamento físico, melhor qualidade de vida. Porque todo aquele que ajuda, sempre é ajudado”.

Assista a trecho da entrevista em vídeo

*Por Lucas Luckezie