Cotidiano

Indígena Macuxi tem acesso à certidão de nascimento aos 20 anos

Géssica recebeu documento por meio de programa da Defensoria Pública de Roraima

“… Eles não foi para a escola… Agora, eles vai para a escola!” (SIC). A história de Géssica Lima da Silva Miguel, indígena da etnia Macuxi, que apenas recentemente, aos 20 anos, conseguiu obter sua certidão de nascimento e dos filhos pequenos, é a mesma de milhões de brasileiros considerados invisíveis para o poder público. São pessoas que fazem parte de um estudo sobre sub-registro no Brasil, encampado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), e que ainda está em fase de atualização.

No caso da jovem, que nasceu no município de Normandia e atualmente vive no Cantá, região metropolitana de Boa Vista, a cidadania chegou por meio de uma ação da Defensoria Pública de Roraima, na qual equipes multiprofissionais vão até as comunidades prestar atendimentos jurídicos gratuitamente.

Géssica mora em uma região de chácaras conhecida como Cantazinho, a menos de um quilômetro da sede do município, situado a pouco mais de 38 quilômetros da capital de Roraima. O caminho sinuoso, encoberto por árvores, escondido nos arredores da cidade, abriga dezenas de famílias onde, a cada dia, são abertas novas vicinais, estradas abertas para o escoamento da produção agrícola no interior de Roraima.

No dia em que Géssica foi atendida pela Defensoria Pública, obteve os registros de nascimento dos três filhos, Isaque (5 anos), Ana Bianca (3) e Tiago (6 meses). Também a irmã que a abriga, e a mãe, já com 61 anos, tiveram acesso ao primeiro documento desde que nasceram no município roraimense de Normandia. O marido, de 26 anos, segue sem certidão de nascimento.

A jovem conta que o primeiro a ter acesso a documentos foi o pai, hoje com 65 anos, mas também há bem pouco tempo e por meio do mesmo projeto. “Eles moravam em Normandia como caseiros (trabalhadores rurais), mas nunca tiraram documentos”. Por conta disso, nenhum deles pôde ter carteiras de trabalho, acesso ao SUS (Sistema Único de Saúde), ou qualquer outro serviço público garantido pela Constituição Federal.

Géssica soube da ação da Defensoria Itinerante por meio de uma senhora que comentou sobre o programa e ofereceu ajuda para ensinar esse ‘caminho para a cidadania’. “Mulher que contou pra mim: ‘Se tu quer juda’. Aí eu fui lá procura, né? Perguntando a pessoa se tem. Aí mulher disse ‘sim’. Eu expliquei: assim, assim, assim. Eu sofri muito, né? Com esses três filhos. Não tinha nem documento, nem nada” (SIC).

Ela recebeu a documentação no mesmo dia por meio da parceria entre a Defensoria com o Instituto de Identificação de Roraima, órgão ligado à secretaria estadual de Segurança Pública, e com isso terá acesso também a toda uma gama de serviços básicos, como educação e saúde, que não são liberados sem informações como data e local de nascimento, e os nomes dos pais.

A emoção de Géssica ao lembrar de todo esse trajeto tem explicação: “Eu queria tanto meu filho ficar assim no escola, né? Queria pra eles estudar, melhor do que eu. Porque eu nunca estuda. Eu não sabe ler, eu não sabe escrever. Aí ficou melhor” (SIC), resume.

 
Assista aqui ao depoimento de Géssica Miguel :

 
 
Documentos são necessários para provar existência, explica assistente social


Francineuma Freitas: Falta informação sobre necessidade de documentação às famílias mais carentes. (Foto Rodrigo Otávio)

A assistente social Francineuma Freitas explica que um ser humano só é considerado um cidadão quando tem documentos. “É por meio disso que podemos provar que estamos vivos e existimos, temos direitos e deveres, acesso aos serviços públicos, principalmente benefícios sociais”, apontou.

Um exemplo disso, segundo ela, é o programa do Governo Estadual chamado Cesta da Família, que entrega alimentos a pessoas em condições de vulnerabilidade. Também o BPC (Beneficio de Proteção Continuada) do Governo Federal, destinado a pessoas com deficiência e idosos com idade acima de 65 anos que não têm como se sustentar. “Para tudo é necessário a documentação, a identificação da pessoa. É através deles que conseguimos nossos direitos, cumprir com nossas obrigações”, salientou.

Francineuma observa que ainda falta informação para a população mais carente. “Infelizmente tem muita gente ainda que não tem acesso, muitas vezes por falta de condições socioeconômicas, falta de conhecimento dos pais”, ponderou.
Parte da solução, reforçou, é preciso ampliar a oferta dos serviços, a exemplo do que faz a Defensoria Pública por meio da Itinerante, e o Governo do Estado, com mutirões de atendimento semanais, e divulgar com a ajuda dos veículos de comunicação. “É preciso incentivar, mostrar a importância de ter seus documentos pessoais, as conquistas que perdem sem isso”, concluiu.

 Defensoria Itinerante completa 10 anos


Oleno Matos, defensor-geral de Roraima: Defensoria Itinerante é uma das metas da instituição para este ano (Foto Abraão Batista)

A metodologia de prestação de atendimento itinerante funciona desde a instalação da Defensoria Pública em 2002, mas antes era realizada em parceria com outras instituições. Em abril deste ano, o programa Defensoria Itinerante completa 10 anos de funcionamento. Só no ano passado foram 11.197 atendimentos. Desses, 4.511 emissões de carteiras de identidade. As perspectivas são de ampliação das atividades.

O defensor-geral de Roraima, Oleno Matos, já vinha comandando as ações antes de assumir o cargo no início deste ano, e resolveu absorver também essa função. “É um carro-chefe da Defensoria. Em resumo, é a esperança que chega a esse cidadão que tem falta de tudo, inclusive de conhecer seus direitos”, ressaltou.

Oleno argumenta que “uma coisa é atender alguém que sabe que tem direito e busca ele e outra coisa é falar com leigo, indígena, ribeirinho, pois muitos desconhecem seus direitos e isso transforma efetivamente a vida daquela pessoa como cidadão”. Essa realidade faz parte da rotina das equipes que atendem no programa. “Em Roraima, o tempo todo tem gente com 30, 40 anos que precisa e não tem essa dignidade”.

Por isso, uma das prioridades do atendimento da Defensoria Itinerante são demandas de Família e Registro. “Fazemos a busca da segunda via da certidão de nascimento e casamento. Temos muita demanda impressionante, a custo zero ao cidadão”, comentou Oleno. Muitos atendimentos são feitos em regiões sem serviço de Internet. Após a recepção da necessidade do cidadão, as equipes da Defensoria concluem o trabalho e retornam à comunidade para entrega do documento. “As comunidades indígenas são as maiores atendidas, pois o papel da Defensoria Itinerante juntamente com Governo do Estado é dar uma atenção maior aos mais vulneráveis. Temos buscado atender de forma forte as regiões onde tem comunidade indígena, como Uiramutã, Normandia e Pacaraima. No Sul do estado, Baliza e Caroebe, e a população ribeirinha no baixo Rio Branco, onde já ficamos 20 dias atendendo a comunidade”, informou.

A falta de informação da sociedade, de modo geral, é ainda um obstáculo. “Cerca de 34% da população não conhece o trabalho da Defensoria. Temos que explicar o papel da instituição, do defensor, e dali criar um entrelaçamento com a comunidade, com os tuxauas, os professores e as lideranças. Quando conquistamos esse espaço, eles se abrem para o conhecimento e veem em busca de todos seus direitos”, complementou.

Metas ampliadas

A meta principal estabelecida por Oleno Matos no final do ano passado é definir um calendário de atendimentos para a capital de Roraima. Conforme ele, a atuação no Interior, sobretudo em municípios não são sede de Comarca (Amajari, Normandia, Cantá, Iracema, São João da Baliza, Caroebe e Uiramutã) é mais forte, mas até o mês de maio a Defensoria Móvel atenderá a comunidade também na periferia de Boa Vista. “Temos demanda retida na periferia aqui da capital, e vamos construir nosso Núcleo nessa região, organizar as Vans do Direito para estar toda semana em um bairro”, anunciou explicando que o trabalho será feito em parceria com associações e escolas.

O defensor faz referência a dois veículos doados pela Secretaria Nacional de Proteção Global, do ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos do Governo Federal, entregues em 2021, ainda em meio à pandemia, para auxiliar no atendimento público em regiões de acesso mais difícil do estado.

A ação, conforme ele, tem como um dos objetivos principais a erradicação do sub-registro de nascimento no país. No ano passado o registro tardio representou 85,71% de todos os atendimentos do programa. A maioria deles no municípios de Bonfim, fronteira com a Guiana, seguido por Pacaraima, que faz fronteira com a Venezuela. “Todo mês dois municípios vão contar com ações itinerantes da Defensoria. Antes, uma equipe vai e prepara a comunidade para receber o atendimento, o que não resolver na hora é trazido para Boa Vista, e no final damos o retorno ao assistido ou voltamos para entregar certidões, e informamos ao Tuxaua ou professor sobre o resultado da ação”, explicou Oleno.

Ele destacou a parceria há dois anos com o instituto de identificação para emissão do RH. “Custeamos os gastos com os servidores e o instituto entra com equipamento”, disse.

ÉLISSAN PAULA RODRIGUES

Especial para a Folha de Boa Vista