DADOS APONTAM:

Evangélicas são as que mais sofrem violência por parceiro íntimo

Relatório revela que 42,7% das evangélicas sofreram violência ao longo da vida, contra 35,1% das católicas, gerando debate sobre o papel da fé na proteção à mulher.

As Nações Unidas definem a violência contra as mulheres como "qualquer ato de violência de gênero que resulte ou possa resultar em danos ou sofrimentos físicos, sexuais ou mentais para as mulheres (Foto: Arquivo FolhaBV)
As Nações Unidas definem a violência contra as mulheres como "qualquer ato de violência de gênero que resulte ou possa resultar em danos ou sofrimentos físicos, sexuais ou mentais para as mulheres (Foto: Arquivo FolhaBV)

Em um cenário alarmante de aumento da violência de gênero no Brasil, um novo relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e do Instituto Datafolha, “Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, joga luz sobre uma questão pouco discutida: o índice de violência doméstica entre mulheres evangélicas é significativamente maior do que entre as católicas.

Os dados revelam que 42,7% das mulheres evangélicas já sofreram violência ao longo da vida, em comparação com 35,1% das católicas, conforme a Tabela 1 do estudo. Nos últimos 12 meses, a prevalência foi de 38,7% para evangélicas e 33,2% para católicas, como indicado na Tabela 5. Este cenário complexo levanta questionamentos profundos sobre o papel da fé, das dinâmicas conjugais e da influência de discursos sociais e políticos na vida de milhões de mulheres brasileiras.

O estudo, que chega à sua quinta edição, aponta que a violência de gênero nos últimos doze meses atingiu o maior índice desde o início da série histórica, em 2016. A despeito da gravidade das agressões, 47,4% das vítimas de violência grave em 2024 afirmaram não ter tomado qualquer atitude. No entanto, um dado se destaca: 6% das vítimas procuraram a igreja em busca de ajuda. Este fato, por si só, ressalta a relevância dos espaços de fé como potenciais ambientes de apoio ou, paradoxalmente, de silenciamento.

A dicotomia do lar cristão: oportunidade ou barreira?

Em entrevista à imprensa, Isabella Matosinhos, pesquisadora do FBSP, mestre em Sociologia e graduada em Direito, a dinâmica marital proposta pelos casamentos cristãos é um fator crucial.

“No Brasil, é comum encontrar centros de acolhimento, inclusive com assessoria jurídica, em estabelecimentos religiosos. Isso pode acontecer tanto no catolicismo quanto nas religiões evangélicas. Mas formulamos hipóteses no sentido de que as religiões são muito firmes na questão do matrimônio, bem como sobre o papel da mulher no casamento”, explica.

Apesar de 50,8% dos lares brasileiros serem chefiados por mulheres, segundo o Boletim Especial do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o discurso religioso frequentemente reforça papéis de gênero tradicionais. Nesse arranjo, homens são vistos como provedores e última autoridade do lar, enquanto as mulheres cumprem funções de cuidado, muitas vezes submetidas à liderança masculina. Essa estrutura pode, por exemplo, explicar o elevado número de queixas sobre estupro conjugal.

A proximidade entre fiéis e líderes religiosos, especialmente nas denominações evangélicas, também é apontada como um fator de ambiguidade.

“Enquanto na igreja católica existe uma hierarquia, o relacionamento é mais distante, entre as evangélicas o pastor é mais acessível, seja para pedir conselho, conversar ou desabafar”, observa Matosinhos.

Essa acessibilidade, que poderia ser uma via para quebrar o ciclo de agressões, na prática, funciona como uma barreira.

“A mulher é desestimulada a fazer a denúncia, a sair do relacionamento, justamente por causa da sacralidade do matrimônio. Ela é aconselhada a outras coisas, como a resignação e a oração para que o agressor mude seu comportamento. São conselhos que apenas fazem com que a mulher siga na situação de violência”, lamenta a pesquisadora.

O cenário político e o crescimento evangélico

O Brasil, apesar de ser um Estado laico, possui uma população majoritariamente cristã, com o segmento evangélico em franco crescimento. O Censo 2022 do IBGE revela que os evangélicos representam um terço da população (31%), um aumento significativo em relação aos 22% registrados em 2010. Projeções indicam que os protestantes podem ultrapassar os católicos a partir de 2032.

Esse crescimento tem se refletido no cenário político, com campanhas eleitorais buscando a adesão de líderes religiosos e discursos públicos direcionados à população evangélica. O

O relatório do FBSP chega a mencionar a eleição de Jair Bolsonaro como um dos fatores que, parcialmente, explicam o aumento da violência. Os pesquisadores argumentam que políticos que normalizam discursos brutais ou naturalizam condutas discriminatórias contribuem para um “caldo cultural que autoriza agressores” e licencia o comportamento autoritário e violento, o que agrava os riscos para meninas e mulheres tanto no espaço público quanto na esfera intrafamiliar.

“O contexto de radicalização política, de maneira geral, influencia na violência, porque nessas gestões temos um desmonte de políticas de enfrentamento à violência de gênero. E isso repercute nas ações individuais”, pontua Matosinhos.

Ela também sugere o “efeito rebote” como uma hipótese. “A cada direito conquistado, temos uma reação adversa de parte da sociedade que tenta barrar a consolidação desse direito. A gente viveu, na última década, uma explosão de conquistas feministas que se materializaram em forma de lei. Mas esse ganho de direito legislativo é contestado pelo discurso de formadores de opinião ou de tomadores de decisão que minimizam a pauta”, conclui.

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