Cotidiano

Conheça a história da travesti Tyffany Montel, morta em 2018

Uma exceção que teve apoio da família, mas não a mesma sorte com a sociedade; investigação de assassinato continua sem desfecho

FABRÍCIO ARAÚJO

Colaborador da Folha

Tyffany Montel era uma travesti com uma sorte que poucas têm nesta vida: o apoio da família. O mesmo não se pode dizer quanto à sociedade. Ela teve problemas para conseguir concluir os estudos por causa do preconceito que sofria, não teve as portas do mercado abertas para poder trabalhar e, por fim, foi assassinada e se tornou mais um caso sem conclusão.

A irmã de Tyffany e estudante de Jornalismo Ana Lúcia Montel lembra que a transição de gênero começou aos 16 anos, quando já era possível observar um jeito diferente de falar, agir e se vestir, mas somente aos 18 anos ela resolveu falar sobre o assunto de forma aberta com a família e contar que era travesti.

Embora a conversa só tenha ocorrido quando completou a maioridade, a família já sabia que ela possuía características distintas. Diversas vezes precisaram intervir na escola para que o direito à educação fosse assegurado a Tyffany. Os irmãos se metiam em brigas para protegê-la e o pai, Dionisio da Silva, precisou recorrer até mesmo à polícia para garantir a segurança da filha na escola.

Silva já sabia o quanto a falta de educação poderia pesar na vida dos filhos, pois só conseguiu concluir o ensino médio por volta dos 40 anos. Ele fez todo o esforço necessário para que Tyffany não desistisse de estudar e fizesse cursos para se preparar para o mercado. Ainda assim, ela concluiu o ensino fundamental e resolveu dar uma pausa.

Quando se assumiu para a família aos 18 anos, decidiu que precisava trabalhar para poder se sustentar e ter liberdade. Os cursos feitos durante a infância e adolescência não foram suficientes para conseguir uma vaga no mercado formal. E foi mais uma travesti empurrada para o mundo da prostituição.

Mesmo o pai sendo um grande defensor da filha, teve dificuldades para entender a transição de gênero e a profissão, mas nunca deixou de ser acolhedor. Por não saber lidar com a situação, Dionisio da Silva procurava sempre ajuda de pessoas que julgava como mais esclarecidas para saber como poder tratar a filha e foi só questão de tempo para que conseguisse entender toda a situação.

“Depois que meu pai aceitou, a relação era muito massa. Ela passou a ser a menina dele, eu chegava até ficar com ciúmes, mas era coisa de irmã. Ele tinha uma relação muito boa com ela. Mesmo antes de aceitar, ele chegou a ir buscar ela várias noites na mangueira para proteger. Ele fazia isso sem aceitar porque acreditava que essa não era a vida que ela merecia depois de ter estudado, feito cursos e tudo mais”, declarou a irmã.

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ASSASSINATO – Os pais de Tyffany precisaram se mudar para o município de Cantá devido a uma oportunidade de trabalho e com esta mudança ela viu uma chance de voltar a estudar em uma cidade menor em que já seria conhecida por todos com sua nova identidade. Em 2017, conseguiu concluir o ensino médio e já estava um passo mais perto de alcançar seu sonho de cursar enfermagem.

Por alguns irmãos terem continuado em Boa Vista, sempre que possível tentavam se reunir. Tyffany resolveu visitar a capital em junho de 2018 e marcou um almoço com a irmã Ana Lúcia no dia 10 de junho, um domingo.

“Um dos meus irmãos recebeu uma ligação falando que tinham assassinado ela, mas ele não acreditou. Decidimos ir até o local porque ela ainda não tinha chegado para almoçar. Quando chegamos lá, infelizmente era ela. Já estavam a equipe do IML e a imprensa. Foi a pior coisa que já vi na minha vida, a minha irmã daquele jeito, porque não esperávamos”, relatou Ana Lúcia.

Os familiares foram à delegacia no dia 21 de janeiro, 7 meses e 11 dias após a morte de Tyffany, e o caso ainda não foi concluído. De acordo com Ana Lúcia, existe um principal suspeito que já prestou depoimentos, mas sempre nega tudo.

“Eles foram ao bar e conversaram com a dona do local, porque ela viu uma briga da minha irmã com ele. Minha irmã ficou com medo e resolveu ir embora. O bar é perto de uma casa de um irmão. Uma moça que mora nas proximidades disse que viu esse suspeito correndo atrás da minha irmã e gritando que iria matar ela porque ele queria ficar com ela, mas ela não queria. E ele deu uma facada nela”.

VOZ – No dia 29 de janeiro, é comemorado o Dia da Visibilidade Trans e o desejo de Ana Lúcia é poder ajudar outras pessoas como sua irmã Tyffany.

“Eu fico muito triste. Mas, ao mesmo tempo, tento buscar forças pelas outras meninas que estão aí nas ruas. A minha irmã já se foi, mas temos outras garotas nas ruas que precisam ter voz e visibilidade. Como irmã da Tyffany, eu sei o que elas passam”.

A Polícia Civil de Roraima informou que o caso ainda está sendo investigado e nenhuma informação poderia ser repassada para não atrapalhar o andamento das investigações.

LGBTfobia não consta em boletins de ocorrência

A Folha também solicitou ao Estado dados referentes a lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTs), mas a informação é que o sistema de boletins de ocorrência é nacional e não computa registros sobre LGBTs.

O advogado André Montenegro explicou que, embora não exista uma lei específica para casos de agressão contra a população LGBT, é possível regulamentar os boletins de ocorrência de forma técnica, tanto no âmbito federal quanto estadual, para que informações sobre a sexualidade e autodeterminação de gênero sejam acrescentadas.

“O que é preciso são ações de segurança pública voltadas para a comunidade LGBT. A importância deste modelo de boletim seria justamente a informação de casos contra pessoas dessa comunidade, até mesmo para que o governo tenha dados a fim de planejar e promover políticas públicas”, declarou Montenegro. (F.A)