Cotidiano

Carvoarias lançam fumaça nos bairros e abrigam crianças que não estudam

Carvoeiros atuam de forma clandestina no Distrito Industrial e dizem que governo prometeu área específica para a atividade há 6 anos

A partir das 17h, todos os dias, é possível ver uma fumaça espessa em alguns bairros da zona Oeste de Boa Vista ao longo do trecho sul da BR-174. Passando o 5º Distrito Policial e percorrendo mais alguns metros até terminar o asfalto da rodovia federal, dezenas de fornos artesanais feitos de barros, no formato de iglus, lançam uma cortina de fumaça, indicando que ali funciona uma carvoaria clandestina.

A Folha foi até o local após denúncias de moradores da região, incomodados com o forte cheiro da fumaça e preocupados com a saúde. Logo na chegada, duas crianças aparentando ter menos de 10 anos surgiram com roupas surradas e manchadas de carvão. Ambas pareciam não se preocupar com a fumaça e com o cheiro forte. Esse é outro sério problema que é desconhecido das autoridades: crianças fora da escola que acompanham seus pais na produção de carvão.

Nos fornos de barros onde os carvões vegetais são produzidos, havia um grupo de quatro carvoeiros conversando. Ao lado, pilhas de sacos plásticos contendo carvão estavam prontas para venda.  Atanízio Vilela, presidente da Cooperativa dos Carvoeiros do Estado de Roraima (Unicarvao) estava no grupo. Quando questionado a respeito da documentação necessária para exercer a atividade naquela região, o carvoeiro foi enfático: “É o que estamos esperando até hoje.”

Vilela relatou que há mais de seis anos procurou a Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento do Estado de Roraima (Seplan) e foi aconselhado a montar uma cooperativa. “Na época, o presidente falou que, se montássemos uma cooperativa, poderíamos dar entrada junto ao Iteraima [Instituto de Terras e Colonização de Roraima] e conseguir uma área de, mais ou menos, 15 hectares após o ‘lixão’ de Boa Vista. Lá seria o local ideal para trabalharmos sem atrapalhar ninguém”, prosseguiu Vilela.

Um dos carvoeiros se manifestou durante a conversa. “Estamos aqui porque não temos outro lugar para ir. Somos trabalhadores, não estamos fazendo nada de errado. Só estamos esperando que eles [poder público] façam alguma coisa pela gente”, disse o homem, que preferiu não se identificar.

O presidente da cooperativa afirmou que foi ao Iteraima mais de dez vezes. “Desde aquela época eu venho cobrando. Vou lá, espero e até hoje nada. Cheguei a ouvir uma vez que resolveriam rápido a nossa questão. Fiquei esperançoso, mas como você vê, continuamos aqui. Nada foi feito.”

Entre os fornos, havia uma espécie de torre em construção. Conforme um dos carvoeiros, essa torre serviria para filtrar a fumaça. “A gente começou a construir, mas ficamos sem recurso. Não temos ajuda de ninguém. É uma torre com chaminé e serve para a fumaça sair sem o cheiro ruim e sem fazer mal à saúde”, disse o homem apontando para a construção inacabada.

Durante a conversa, mais uma criança apareceu no local com as roupas coberta de cinzas e o rosto sujo. Era filho de um dos carvoeiros. A equipe de reportagem perguntou sobre a presença de menores de idade na carvoaria. “Eles não trabalham aqui. Vêm acompanhando os pais que trabalham aqui. Alguns não estudam e não têm onde ficar”, relatou um dos trabalhadores.

Informados sobre as denúncias e reclamações dos moradores, eles se posicionaram. “Essa carvoaria aqui é conhecida como ‘Trevo’. Não é essa que incomoda tanto, porque fica mais distante das casas. Existem várias outras carvoarias que seguem até o Jardim das Copaíbas. Se quiserem, eu levo vocês lá”, sugeriu o carvoeiro que preferiu não se identificar.

A Folha aceitou o convite e seguiu o homem por um percurso estreito, sem asfalto e com algumas casas ao redor. De dentro do carro, era possível ver os fornos fumegantes enfileirados e algumas pilhas de madeira esperando para serem queimadas (uma das primeiras fases do processo de produção de carvão vegetal). Famílias circulavam nas proximidades e pareciam não se importar com a fumaça. “A gente acostuma depois de um tempo”, respondeu o carvoeiro.

JUIZADO DA INFÂNCIA – A Folha entrou em contato com a Divisão de Proteção da Vara da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de Roraima (TJ) para saber sobre a situação das crianças nas carvoarias.

Conforme a chefe da Divisão, Lorrane Costa, o órgão nunca recebeu denúncia sobre esse tipo de situação de vulnerabilidade. “Vamos tomar a notícia de vocês para empreendermos diligências no local para apurar essas infrações. Encaminharemos cópia aos órgãos de fiscalização do trabalho também”, disse.

Área tem 20 carvoeiros atuando

São mais de 20 carvoeiros atuando só naquela região do “Trevo”. Cada um possui uma quantidade de fornos. Cada forno produz o equivalente para preencher uma média de 500 sacolas, que são vendidas por aproximadamente R$ 2,00 a unidade. O processo dura cerca de dez dias.

Por mês, em média, a carvoaria produz 500 toneladas de carvão. “A gente só vende aqui em Boa Vista mesmo, e só para os mercados. Se conseguíssemos a nossa área prometida pelo Iteraima, conseguiríamos produzir bem mais e começar a exportar até para os países vizinhos”, disse um carvoeiro.

PREFEITURA – A Prefeitura de Boa Vista informou que os fiscais da SMGA foram ao local e constataram as irregularidades e já estão tomando as providências. Frisou que a área que compreende o Distrito Industrial é de responsabilidade do Governo do Estado.

GOVERNO – O Governo do Estado afirmou que tem se posicionado para amenizar a poluição gerada por meio dos carvoeiros instalados no Distrito Industrial. “Em 2015, o Departamento de Indústria, Comércio e Serviços da Secretaria Estadual de Planejamento e Desenvolvimento (Seplan) realizou reuniões e encontros com os carvoeiros para tratar de diversos assuntos relacionados às atividades desenvolvidas naquele local”, frisou.

Conforme o governo, o departamento realizou levantamento socioeconômico no intuito de ajudá-los. “Em 2016 foi realizado contato direto com a professora Rosane Oliveira, especialista em projetos ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que se prontificou a ajudar com projetos voltados aos carvoeiros. A Seplan está analisando a melhor forma de diminuir esse entrave para encontrar solução possível entre moradores e carvoeiros.”

ITERAIMA – Iteraima informa que está verificando, em conjunto com a Seplan, uma solução definitiva para as questões do Distrito Industrial.

IBAMA – A Folha entrou em contato com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para saber sobre a atividade da carvoaria e se há alguma denúncia, já que para a produção de carvão é necessária a queima de madeira. Até o fechamento desta matéria, às 18h, não houve resposta.

Fumaça incomoda moradores de vários bairros da região

O servidor público Vagner Silveira, que mora no bairro São Bento, perto das carvoarias, é um dos que reclamam da fumaça. Com um filho de 5 anos, o morador se queixa que a fumaça intensificou nos últimos seis meses, apesar de ser um problema que afeta a localidade há alguns anos.

“É um problema horrível. Quando começou a piorar, eu fui atrás para saber de onde vinha tanta fumaça, foi quando descobri a carvoaria. O céu chega a ficar branco e a gente sente dificuldade para respirar, sem contar os espirros ininterruptos”, relatou. Segundo ele, são vários os bairros onde a fumaça alcança: Araceli, Cinturão Verde, Centenário, Bela Vista, Operário, Jardim das Copaíbas, entre outros.

Um morador afirmou que esse problema dura mais de seis anos. “Eu morei na Rua Bérgamo, no final do Centenário, durante muito tempo. O mau cheiro e a fumaça eram constantes”, disse.

Vagner Silveira percebeu que não era o único morador a se incomodar e procurou a Secretaria Municipal de Gestão Ambiental (SMGA). “Quando cheguei lá para denunciar, pediram que eu levasse um comprovante de residência da carvoaria. Como eu ia chegar lá no local que estou denunciando e pedir um documento desses?”, indagou.

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