JESSÉ SOUZA

Caso Paraviana: uma questão de criminalização da pobreza e usurpação de espaço urbano  

Construção de conjunto habitacional no Paravania se tornou o centro de um debate (Foto: Divulgação)

Em tempos de influenciadora de jogos na internet sendo tietada por senadores em plena audiência pública e de bebês de plásticos sendo tratados como se humanos fossem, não é surpresa que surjam pessoas que sintam seu espaço geográfico, seu status social e seu poderio econômico ameaçados por instalação de conjunto habitacional, como se casas populares fossem símbolos de degradação social e se classe econômica baixa fosse autorização para se tornar bandido.

Obviamente que não se trata de um movimento organizado, que não engloba a maioria dos moradores, mas surgiu uma manifestação de pessoas anunciando a coleta de um abaixo-assinado para tentar impedir a construção de unidades habitacionais do programa Minha Casa, Minha Vida no bairro Paraviana, zona Leste da Capital, considerado no Estado como uma área nobre, onde moram as classes mais abastadas da sociedade.

Talvez nem seja um grupo expressivo, mas a preocupação dessas pessoas é que o projeto de construir unidades habitacionais do programa federal possa representar um atentado ao seu grupo social, o que poderá provocar a desvalorização dos imóveis e desencadeando impactos negativos para o trânsito, segurança e infraestrutura daquele bairro. A propósito, não foi a primeira vez que um movimento nesse nível ocorreu.  

Meses atrás, surgiram pessoas querendo impedir que a Prefeitura de Boa Vista construísse um ecoponto naquele mesmo bairro como parte da execução do Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (PMGIRS). As alegações se convergem, pois na cabeça dessas pessoas o projeto iria gerar desorganização, sujeira e insegurança. Ou seja: moradias populares e reciclagem de lixo significam pobreza, que por sua vez seria um carimbo de autorização para o crime.

A criminalização da pobreza e da miséria não se trata apenas de uma mentalidade elitista excludente, mas de uma política colocada em prática cotidianamente há séculos, em que a assepsia de pessoas pobres de setores da cidade empurra a classe mais baixa da população para bem longe, em um processo brutal de marginalização, em que pobres devem morar onde não haja infraestrutura, emprego e acesso às necessidades mais básicas, como saneamento, educação, saúde e segurança.

O inverso, que é tentar inserir as pessoas em uma dignidade habitacional a que todos deveriam ter dentro de políticas públicas, provoca indignação em quem trata os mais pobres como miseráveis a serem expurgados de seu convívio social, ainda que seja uma proposta para permitir que assalariados, os quais são os empregados da elite econômica, fiquem mais perto de seus locais de trabalho e morando com dignidade.

O aceitável dentro dessa mentalidade é se apropriar do espaço geográfico, como ocorreu exatamente com aquele setor da cidade, onde o bairro Caçari começou como um conjunto habitacional para pessoas de baixa e média rendas, onde poucos queriam morar, o qual foi sendo apossado pelos mais abastados por meio de um processo de assepsia social onde habitação com estrutura deve ser direito apenas de uns poucos.

Sobre esse tema em discussão, é importante ler a posição da professora Elilma Vasconcelos, geógrafa e psicopedagoga, que em sua rede social fez a postagem “Direito à cidade ou privilégios de poucos?”. Ela trata a questão como um embate que vai além da construção de moradias populares em uma das áreas mais valorizadas da Capital, escancarando questões profundas sobre segregação socioespacial e disputa pelo uso do solo urbano, conforme escreveu.

“Do ponto de vista geográfico, a cidade é um espaço de disputa. O solo urbano tem valor não só econômico, mas também simbólico e político. Ao propor habitação popular em uma área nobre, o Estado intervém diretamente na lógica de exclusão que costuma empurrar as classes populares para as periferias e áreas de menor infraestrutura”, comentou a professora.

“Sociologicamente, o que vemos é uma reação ao que Pierre Bourdieu chamaria de defesa do capital simbólico. Moradores que associam o bairro a status e prestígio sentem-se ameaçados por uma ‘invasão simbólica’ que questiona hierarquias sociais historicamente construídas. A proposta do programa não é apenas dar casas, mas promover inclusão, mobilidade social e equidade urbana. E isso incomoda quem naturalizou o privilégio do espaço urbano como herança de poucos”, prosseguiu.

Para ela, o debate não é só sobre localização. “É sobre direito à cidade (Lefebvre) e a quem ela pertence. Todo morador de Boa Vista merece acesso a bairros bem localizados, seguros e com infraestrutura — e isso não deveria ser privilégio. É hora de refletir sobre o que significa viver em uma cidade justa, inclusiva e pensada para todos”.

O debate está à mesa…

*Colunista

[email protected]

“As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do Jornal”

Compartilhe via WhatsApp.
Compartilhe via Facebook.
Compartilhe via Threads.
Compartilhe via Telegram.
Compartilhe via Linkedin.