ÁLBUM ESSENCIAL

'Currents' por Tame Impala: uma viagem sem volta ao centro do eu digital

Entre o lamento e o êxtase, o álbum que diz o que é ser humano na era digital

'Currents' por Tame Impala: uma viagem sem volta ao centro do eu digital

Em 2015, quando o mundo ainda tentava entender se vivia numa era de conexão total ou de solidão digital, Kevin Parker entregou ao cosmos musical um disco que era, ao mesmo tempo, um espelho quebrado e um caleidoscópio perfeito. “Currents”, terceiro álbum do projeto australiano Tame Impala, não foi apenas uma evolução e transmutação. O garoto que outrora gravava faixas em seu quarto, embebido em reverberações dos anos 1960, agora surgia como um arquiteto de paisagens sonoras que pareciam vibrar entre o drama íntimo e a euforia coletiva.

Para entender o contexto

Nessa época, a música independente flertava cada vez mais com o pop, a cultura dos festivais atingia o ápice, e uma geração criada na internet buscava, paradoxalmente, experiências tanto mais tátéis quanto etéreas. “Currents” chegou como um portal entre esses mundos. Se em “Lonerism” (2012) Parker ainda era o sonhador introspectivo, aqui ele assumia o papel de alquimista, transformando angústias pessoais, desilusões amorosas e crises de identidade em hinos que brilhavam como néon em noite úmida.

Produção e tracklist

Kevin Parker para a revista Rolling Stone (Foto: Kelia Anne)

A produção, inteiramente manipulada por Parker em seu estúdio caseiro, é um milagre de contradições: baterias gordas que parecem saídas de um disco de disco dos anos 1977, sintetizadores que choram como androides românticos, e vocais que flutuam entre o humano e o artificial.

Em “Let It Happen”, faixa de abertura, ele nos joga num turbilhão de loops hipnóticos e cortes abruptos, como se estivesse simulando a própria experiência de um ataque de pânico ou de êxtase, que não acaba nunca.

Já “The Less I Know The Better”, com seu baixo funk e melodia grudenta, é a canção de amor mais doentia que já soou como um hit de rádio, uma narrativa de obsessão disfarçada de balada dançante.

Mas o verdadeiro trunfo de “Currents” está em como Parker reconfigura a psicodelia para além do clichê do “som espacial”. Em “Eventually”, a dor da separação vira uma catedral de harmonia, onde cada “aaaaah” nos layers vocais parece uma faca revestida de veludo.

Em “New Person, Same Old Mistakes”, o artista quase sussurra promessas de reinvenção enquanto os sintetizadores se torcem como serpentes digitais, questionando: é possível realmente mudar?

Recepção

A recepção foi polarizada como todo clássico em gestação. Alguns fãs antigos estranharam o “pop demais”, críticos conservadores torceram o nariz para o “excesso de produção”, mas, com o tempo, o disco revelou-se inevitável. Tornou-se a trilha sonora de festas, de crises existenciais, de reconciliações, e influenciou desde The Weeknd, Dua Lipa e até Kali Uchis, provando que a fronteira entre o indie e o mainstream é, afinal, uma ilusão.

Hoje, “Currents” é visto como um marco da música do século 21, um disco que capturou o desejo moderno de se perder para se encontrar. Ele fala sobre amores que se desfazem como fiapos de memória, sobre a angústia de crescer sem saber para onde ir, e, sobretudo, sobre a beleza trêmula de seguir em frente, mesmo quando tudo parece desabar.

Para quem é Currents

Esse álbum é para quem já dançou sozinho no quarto com o coração partido. Para quem entende que Daft Punk e Pink Floyd podem habitar a mesma frase. Para os que sabem que, às vezes, a melhor forma de lidar com a vida é mergulhar de cabeça na correnteza e deixar que ela te leve, sem resistência, para o próximo capítulo.

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