Ronildo Rodrigues dos santos
Cientista Social
A morte do Papa Francisco marca um ponto de inflexão na história contemporânea da Igreja Católica. Seu pontificado, iniciado em 2013, representou mais do que uma mudança de estilo ou de linguagem. Foi a tentativa ousada de reencarnar, no século XXI, as intuições do Concílio Vaticano II, levando a Igreja a se colocar novamente ao lado dos pobres, das periferias, dos povos originários, das vítimas de um sistema econômico que mata. Agora, diante da escolha de seu sucessor, a Igreja se vê diante de uma encruzilhada: continuar o caminho traçado por Francisco ou ceder às pressões internas por uma guinada conservadora?
Francisco será lembrado como um papa que devolveu o rosto humano à cátedra de Pedro. Vindo do “fim do mundo”, como ele mesmo se apresentou, assumiu o ministério petrino com os olhos voltados para os esquecidos. Seus gestos — do lava-pés em presídios à denúncia profética da “economia que mata” — foram profundamente teológicos. Mais do que discursos, suas ações expressavam uma eclesiologia renovada, em que a Igreja deixa de ser uma fortaleza a defender verdades abstratas para tornar-se um hospital de campanha, como dizia o próprio pontífice.
Sob sua liderança, o Vaticano voltou a ser um ator moral de peso no cenário internacional. A Laudato Si’ e a Fratelli Tutti são documentos que já se tornaram referência não apenas para católicos, mas para todos que buscam alternativas éticas a um mundo marcado por crises ambientais, desigualdade social e violência estrutural. Neles, ecoam a Doutrina Social da Igreja, as intuições da Teologia da Libertação e a mística franciscana de cuidado com os pobres e com a criação.
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O Sínodo da Amazônia, em 2019, talvez tenha sido a expressão mais contundente dessa nova orientação pastoral. Ali, Francisco escutou os povos originários, desafiou o colonialismo cultural ainda presente na missão católica e propôs um modelo de Igreja encarnada, com “rosto amazônico”. Esse sínodo não foi apenas um evento regional; foi uma expressão da opção preferencial pelos pobres e pela ecologia integral, pilares do que poderíamos chamar de “nova consciência eclesial”.
A Economia de Clara e Francisco, por sua vez, deu voz à juventude que não se conforma com o modelo neoliberal dominante. Ao convocar jovens economistas, empreendedores e ativistas do mundo inteiro para pensar um novo paradigma econômico baseado na solidariedade, no cuidado e na justiça, Francisco recolocou a Igreja no coração dos debates mais urgentes da humanidade. Sua proposta era radical: não basta reformar o sistema; é preciso mudar a lógica do lucro a qualquer custo.
No entanto, nem todos viram com bons olhos essas movimentações. Internamente, Francisco enfrentou forte resistência de setores eclesiásticos que consideram suas reformas perigosamente ambíguas ou excessivamente “progressistas”. A oposição a ele foi, muitas vezes, pública e organizada, revelando as tensões profundas que atravessam o catolicismo atual: entre centralização e sinodalidade, entre moralismo doutrinário e misericórdia pastoral, entre tradição estática e tradição viva.
Agora, com a Sé de Pedro vacante, a questão que se impõe é: qual será o rumo da Igreja? O próximo papa terá a tarefa de discernir entre consolidar o processo iniciado por Francisco ou promover uma inflexão que retome o controle institucional mais rígido e uma ortodoxia impositiva. Não será uma escolha apenas de nomes ou estilos, mas de visão de mundo.
Como sociólogo e como católico, acredito que a Igreja não pode retroceder. Os tempos exigem ousadia, escuta e fidelidade ao Evangelho encarnado na história. O Concílio Vaticano II permanece como farol: a Igreja é chamada a ler os sinais dos tempos, a ser fermento no mundo, a caminhar com os que sofrem. Isso não é relativismo; é fidelidade a Jesus de Nazaré.
Seja quem for o próximo papa, ele herdará não apenas uma Igreja global e diversa, mas também um mundo em transformação acelerada. A crise climática, as migrações forçadas, o avanço do autoritarismo político e o colapso das democracias impõem à Igreja a tarefa de ser consciência crítica da sociedade — e não seu espelho complacente. Para isso, é preciso continuar a sonhar com uma “Igreja pobre para os pobres”, como Francisco nos ensinou.
O futuro da Igreja está em aberto. Mas se quisermos ser fiéis à herança do Evangelho, não podemos abrir mão do caminho iniciado por Francisco. Cabe a nós, povo de Deus, manter viva essa esperança.