Cotidiano

Conselheiros tutelares enfrentam problemas para cumprir o ECA

Estatuto da Criança e do Adolescente completou 28 anos, mas falta de estrutura compromete aplicação da lei

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 28 anos ontem, 13. Apesar de ele ter sido criado há quase três décadas, a sua aplicação ainda parece sofrer diversos entraves em Boa Vista.

O conselheiro tutelar, José Augusto Valente, atua no Conselho Tutelar do Território II, localizado no terminal do Caimbé. Ele apontou os três principais problemas que enfrenta no exercício de sua profissão: a localização, a estrutura e a insegurança.

Pelo fato de o conselho tutelar do território II ser situado no terminal, Augusto contou que crianças e adolescentes costumam ficar muito expostos aos populares que andam pelo local. A situação é tão crítica que o conselheiro deixa uma toalha separada para cobrir o rosto do menor que é levado ao local.

“Quando trazemos jovens para cá, é comum que as pessoas que andam por aqui já olhem desconfiados e até gritem ‘ei, o que essa vagabunda fez?’. Imagina a criança, que já passou por tanta coisa e sofreu, ainda precisar ouvir isso? Eu costumo responder ‘não sei se te respondo ou se mando a guarda civil te prender’. Até porque não cabe ao conselheiro julgar, nós apenas damos andamento no cumprimento do Estatuto”, contou.

Quanto à estrutura, Augusto Valente relatou que os móveis cedidos, como armários e gavetas, estão caindo aos pedaços, dificultando o armazenamento de arquivos e classificação de documentos. “Não temos acesso a bebedouro, pois não há um aqui no terminal. A minha mesa do escritório está com a gaveta arrebentada e alguns armários também. Vamos organizando documentos do jeito que dá. Além disso, tínhamos um problema de falta de cobertura nos vidros das nossas salas. Mês passado, isso foi resolvido, mas foi depois de muita cobrança”, lamentou.

O problema não se estende somente a estrutura do local em si. O efetivo de carros, que é de apenas um por cada território do conselho tutelar na Capital, possui uma quantia limitada de combustível por mês, que pode acabar a qualquer momento. “Nós conseguimos, depois de muita insistência, que a Prefeitura de Boa Vista cedesse um carro para cada território e R$ 2.000 por mês para pagar a gasolina. Acontece que, com o tanto de denúncias que atendemos, é fácil ficar sem combustível antes do final do mês. Então, tem vezes que o carro passa a semana parado e nós ficamos dependendo dos carros de outros territórios ou sem condições de trabalhar. Sem falar nas várias notificações que mandamos todos os dias para residências. Para resolver isso, seria ótimo uma moto, mas a Prefeitura nunca acatou nosso pedido”, relatou.

Já a segurança, é inexistente. Mesmo correndo riscos diários de represália por parte de parentes ou bandidos que podem ter ligação com o jovem que é levado, o conselheiro tutelar contou que não se pode portar uma arma e também não existe um efetivo que possa ajudar nisso. “Imagina que um pai fica indignado que levei o filho dele, pega uma arma, vem até aqui e me dá um tiro na cara. Ninguém poderá me proteger, pois a guarda fica no piso de baixo e estamos no de cima. Eu também não poderei, pois minha única arma é a caneta. Pedimos uma escolta da Guarda Municipal para ajudar a proteger não apenas nós, mas os menores de idade também”, explicou.

Muitas vezes, segundo o conselheiro, é comum as polícias recorrerem ao órgão, no caso da falta de parentes ou responsáveis, para que levem algum menor de idade para sua casa após uma condução à delegacia. Mesmo não sendo obrigados, os conselheiros tutelares atendem aos pedidos.

“Já teve situações que fomos buscar uma criança na delegacia, para levar para casa, e, ao chegarmos lá, encontramos uma gente reunida só esperando o menino chegar, por ter envolvimento com facção. Depois disso, levávamos ele de volta para a delegacia, pois lá ainda era mais seguro que em casa. Depois de um tempo, paramos de escoltar adolescentes até residências de madrugada, pois não oferecemos proteção efetiva para ele, e nem era nossa obrigação”, contou.

Em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente como um todo, o conselheiro tutelar concluiu sua fala dizendo que os avanços dele são positivos, mas ainda existe uma carência grande de investimentos no seu efetivo para o cumprimento das leis.

“O ECA ainda está engatinhando. Tem muita coisa para mudar na forma em que estamos tentando exercer o direito do jovem. Não cuspo na Prefeitura, pois sei que ela contribuiu com algumas coisas, depois de pressionarmos, mas ainda falta muito. Além disso, também agradecemos imensamente o apoio da Guarda Municipal, das Polícias Militar e Civil. São órgãos que sempre nos ajudam nas dificuldades. Tentamos fazer o nosso trabalho de todo jeito, independente das condições. E queremos, um dia, poder nos reunir com a prefeita para tratarmos desses problemas, com calma e honestidade”, finalizou.

PREFEITURA – A Secretaria Municipal de Gestão Social afirmou que já foi providenciado um novo imóvel para a rede de proteção e garantia de direitos das crianças e adolescentes. “Na próxima semana será feita a sinalização do local e a instalação do mobiliário”, garantiu.

Corrupção também prejudica direitos das crianças, diz advogada

 

Além dos problemas que o próprio efetivo do Conselho Tutelar sofre em relação à falta de recursos, a presidente da Comissão da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), advogada Denise Calil, explicou que o descumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) também se dá através da própria corrupção, algo que muitos podem não reparar.

“Volta e meia surgem notícias relacionadas a crianças que sofrem consequências por negligência de adultos. Um exemplo disso são os casos de prefeitos, geralmente de cidades pequenas pelo Brasil, que acabam desviando verba ao ponto de deixar escolas impraticáveis para os alunos. Um político nessa posição pode responder sim, além de corrupção, pelo seu descaso com os direitos básicos de crianças e adolescentes.”, afirmou.

Denise também destacou que a isenção da própria sociedade também colabora para que o Estatuto não tenha o peso que é necessário para o seu cumprimento. “Falta um comprometimento da sociedade. As pessoas são passivas demais aos problemas que ocorrem com crianças que acabam sendo mal tratadas ou humilhadas. Muitas presenciam e pensam ‘não é comigo!’. Daí, essa pessoa vai, no máximo, comentar com um amigo ou vizinho, mas permitirá que aquilo continue acontecendo. Por isso, eu reforço que para o ECA funcionar, a própria sociedade precisa colaborar”, enfatizou.

A presidente da Comissão da Criança e do Adolescente reconheceu que no próprio estatuto existem falhas. A mais grave, pelo o que foi apontada por ela, é a explicação dada por ele em relação ao processo de adoção. “Vejo que o que falta no estatuto é um conteúdo substancial sobre adoção. Crianças ou adolescentes acabam morando em orfanatos e, na grande maioria, permanecem anos e são despejadas ao completarem a maioridade. Isso ocorre, pois não há um sistema inteligente para a efetivação de adoções. Existe um Projeto de Lei para a criação de um Estatuto da Adoção, para livrar um pouco da burocracia do processo de adoção, mas ele ainda está em pauta no Senado”, disse.

Apesar de tantas coisas falhas no ECA e em sua aplicação, Denise ressaltou que o avanço primordial dele é a prioridade absoluta da criança e do adolescente nos direitos à saúde e educação. “A vacinação de menores é obrigatória, com punição para os responsáveis que não levarem o jovem para se vacinar. A mesma coisa se aplica na educação, com a obrigatoriedade da escola. Na teoria, todos esses direitos estão corretos. E o estatuto merece ser reconhecido por isso. Claro que ele precisa melhorar, mas a sua transformação já é evidente na sociedade hoje”, concluiu. (P.B)