Opinião

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Questões de gênero: é “ideologia” que chama? – Kézia Wandressa da C. Lima*

No dia 29 de maio de 2018, tivemos a audiência pública sobre “ideologia de gênero” na Câmara dos Vereadores. A audiência havia sido convocada pela vereadora Mirian Reis (PHS) que, na abertura da audiência, enfatizou que a audiência não tinha tendência para nenhum posicionamento, a favor ou contra a discussão de gênero, mas o que se registra aqui é que desde o planejamento dessa audiência uma única tendência já estava decidida.

Primeiramente, porque a matéria que havia anunciado a audiência pública no site da Câmara dos Vereadores (no dia 15/05/2018) sequer dizia o horário de início. Como os interessados poderiam participar sem saber do horário? Em segundo lugar, a mesma matéria mencionava que seriam convidadas instituições religiosas (todas eram cristãs), OAB, Assembleia Legislativa, Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, Prefeitura e responsáveis dos alunos. Terceiro, os setores da sociedade civil organizada ligados à pesquisa em educação não tinham sido convidados. A organização da audiência pública foi alertada por nós e foi altamente solícita em concordar com a participação de educadores e pesquisadores, mas não houve iniciativa de enviar os convites para tais entidades. O espaço de fala foi garantido, mas se não tivéssemos ido por não terem nos garantido a fala? Uma possibilidade de leitura da nossa ausência seria a de que “não quisemos ir” e a audiência teria chegado à conclusão de que a sociedade seria “unanimemente” contra a discussão de gênero, já que não haveria nenhum contraponto ali.

Educadores e profissionais da proteção à criança e adolescente e defensoras dos direitos das mulheres da sociedade civil organizada, que sempre mostraram disposição de refletir e dialogar sobre as questões de gênero, iniciaram as falas. Mostraram que “ideologia” de gênero não existe. O que existe é a reflexão e a pesquisa sobre as desigualdades de gênero que produzem a violência, o abuso sexual, pedofilia, etc.

Mostraram diferenças biológicas entre macho e fêmea. E que, como humanos que somos, as formas de ser mulher e de ser homem variam muito ao longo do tempo e conforme a cultura. Para nós, humanos, existem diferenças sexuais (biológicas) e também diferenças de gênero (culturais e históricas). Ser mulher há cem anos não é o mesmo que ser mulher hoje em dia. Porque, com a luta de muitas mulheres, hoje, podemos estar presentes numa audiência pública ou ser vereadoras eleitas.

Grande parte dos presentes (e inclusive alguns vereadores) não estavam dispostos a dialogar ou compreender o que a pesquisa sobre gênero realmente faz. Aos gritos, acusavam os pesquisadores de “fugir do tema” porque trouxeram as explicações descritas acima. A grande limitação do tema, pelo que percebo, é que colocaram uma cortina de fumaça no tema “gênero”, atribuindo o rótulo de “ideologia”, numa tentativa de dar uma conotação pejorativa ao termo, e colocam a questão de gênero apenas na pauta sexual. O que eu questiono aqui é: por que o que eu faço é ideológico e o que você faz não é? Quem define, a partir de quê, o que é ideológico?

Quando a audiência pública abriu as falas ao público presente – no limite de 4 falas de 1 minuto cada – minha fala seguiu nesse sentido, de expor que gênero não se resume à sexualidade e na reflexão do que é ideologia. Enquanto tentava falar, fui cercada por homens que gritavam ao meu redor “satanás”, “sua feminista”. Eu mal podia me concentrar no que tinha para falar. É assim que uma sociedade machista age: tentam nos calar, nos silenciar, nos intimidar.

O pastor e professor Alfredo de Souza foi categórico em afirmar que discorda do ensino religioso na escola – o que não ocasionou nenhuma manifestação de apoio entre os presentes, como observou o vereador Renato Queiroz – assim como, também, discorda que se discuta gênero por entender isso como uma questão familiar – aí sim, teve amplo apoio dos presentes. Mas, vejamos, e as famílias em que a rotina é ver o pai espancar a mãe? Enquanto sociedade, devemos deixar nas mãos somente das famílias os esclarecimentos sobre respeito e violência? A escola não pode ser omissa no seu papel de formar cidadãos e isso inclui discutir as questões de gênero.

No final das falas, a vereadora Mirian Reis (PHS) – a mesma que disse que não havia nenhuma tendência ou favoritismo no debate – agradeceu aos presentes, fez agradecimentos direcionados ao “seu” Pastor Isamar Ramalho (Assembleia de Deus), agradeceu e concluiu que o espaço de debate sobre “ideologia de gênero” ainda deve ser realizado mais vezes.

Não somos contrários a nenhuma orientação religiosa, o que pedimos é honestidade e coerência. Nossa luta é totalmente a favor das normas religiosas de amor ao próximo, respeito e compaixão. Prova disso é que na audiência estivemos ao lado da Irmã Telma (Igreja Católica) no debate de gênero e na defesa da igualdade. O que queremos é um mundo mais justo, reconhecendo a diversidade, sem desigualdades e com direito à vida e liberdade de toda pessoa, independente da sua orientação sexual.

* Historiadora e mestre em Sociedade e Fronteiras

 

Voo da liberdade – Afonso Rodrigues de Oliveira*

“A verdadeira liberdade não é a liberdade DE, mas a liberdade PARA”. (Tagore)

Tenho certeza de que só vou deixar de trabalhar quando deixar de viver. Não sou preguiçoso, mas adoro as sextas-feiras. É verdade. A sexta-feira sempre foi um dos dias que me deixam meio fora de mim. Sempre abro a janela e sinto que é sexta-feira. É um dia diferente. Aí começo a divagar. Na última sexta-feira foi assim. Ainda estava deitado, pela manhã, e nem me tocava que era sexta-feira. De repente pensei: taí um dia que eu adoraria estar em São Paulo. Uma manhã fresquinha, daquelas em que adoro fazer minha caminhada pelas ruas de Sampa. Adoro aquela cidade. E como ainda estava deitado, aproveitei para fazer, em pensamento, o que faria se estivesse lá. Eu desceria pelo elevador, sairia para a direita do prédio, subiria a Sarzedas, atravessaria a Conselheiro Furtado e entraria na Praça João Mendes. Atravessaria a Praça, entraria pela 11 de Agosto e sairia na Praça da
Sé. É aí que paro, logo pararia. Admiraria a Catedral e atravessaria a Praça, observando o movimento misto de mendigos, evangélicos e católicos que sobem as escadas, não para orar, mas para rezar.

Escolheria entre a Rua Direita e a Roberto Simonsen. Optaria por esta. Caminharia até o Pátio do Colégio. Adoro o movimento daquele Pátio. Aí minha divagação já se tornara real. Segui pela Rua Boa Vista, passei pela Porto Geral finalmente cheguei ao Largo de São Bento. Entrei pelo Viaduto Santa Ifigênia e segui em frente. Continuei até a Avenida Ipiranga, desci para esquerda e entrei pela Praça da República. Outro espaço que sempre me cativou. Vivi muitos momentos agradáveis e inesquecíveis, de minha juventude, naquela Praça. A feira de artesanato ainda hoje me atrai. Caminhei pela praça já meio desgastada, entrei pela Rua Barão de Itapetininga e parei diante do Teatro Municipal. Senti falta e saudade dele. Driblei os pedestres na movimentação pela calçada agitada, entrei pelo Viaduto do Chá e parei na Praça do Patriarca. Outro ambiente onde me sinto em casa. Sempre que passo por ali me lembro dos velhos tempos em que assistíamos a grandes exposições de arte na década dos cinquentas. Dei uma de visitante turista e parei diante da Estátua. Admirei-a e segui pela Rua Direita, agora de volta para casa.

Novamente na Praça da Sé, fiz a mesma caminhada da ida, agora descendo a Conde de Sarzedas. Entrei no prédio, bati um papo vulgar com o porteiro, tomei o elevador e entrei em casa. A Salete acordou e eu estava rindo na cama. Ela me olhou e não entendeu. Nem poderia. Pense nisso.

*Articulista [email protected]